Coluna Irineu Fontes
Entrei no Conservatório de Música de Sergipe aos nove anos de idade. E, aos dez, já tocava nos concertos eruditos de final de ano. Mas, o que eu mesmo gostava era de cantar e tocar as músicas que ouvia na Radiola Empire.
Morávamos na rua Divina Pastora. Meu pai, Irineu Silva Fontes, era representante comercial da Empire Rádio e Radiola. Logo depois, trouxe a primeira TV para Sergipe e montou uma repetidora no morro do Urubu. Entretanto, essa é outra história.
Era um móvel lindo. Harmonizava com aqueles existentes na sala. Tinha o rádio, pelo qual meu pai ouvia os nossos vizinhos, Silva Lima, Batalhinha, Santos Mendonça, além das transmissões de futebol pelas rádios Cultura e Difusora. Todavia, o toca-discos era o meu xodó. Ouvia Dolores Duran, Nelson Gonsalves, Roberto Carlos e os cantores da Jovem Guarda, naquele aparelho dos sonhos. Músicas que minha mãe, Maria Susete, adorava escutar. Como meu pai era o representante, esse aparelho foi sendo renovado por lançamentos mais modernos: dois em um, três em um, toca-discos, vitrola.
Um belo dia, cheguei em casa e minha mãe tinha uma surpresa. Meu pai tinha levado, para me presentear, uma vitrola portátil. Um novo modelo, lançamento da Empire, e alguns discos. Entre esses discos que, sinceramente, não sei até hoje onde ele conseguiu. Tinha dois álbuns da dupla de folk rock norte-americana, Simon & Garfunkel. “The Graduate”, que foi trilha do filme do mesmo nome e que tinha a música “Mrs. Robinson” (Sitting on a sofa on a Sunday afternoon/ Going to the candidates’ debate/ Laugh about it, shout about it/ When you’ve got to choose/ Every way you look at this you lose (sentando em um sofá em uma tarde de domingo/ Indo para o debate dos candidatos/ Ria sobre isso, grite sobre isso/ Quando você tem que escolher/ Cada maneira que você olha para isso você perde.) e “Bridge over Troubled Water”, que tinha outro grande sucesso da dupla, “Cecilia” – (Cecilia, You’re breaking my heart – Cecília, você está partindo meu coração).
Paul Simon e Art Garfunkel integravam-se. Vozes harmoniosas, violões impecáveis, sonoridade que ainda não tinha ouvido, foi paixão à primeira ouvida e tentativas de tocar e cantar como eles. Os dois foram, como Bob Dylan, Ivan Lins, Elis Regina, Zé Rodrix, Milton Nascimento e Villa-Lobos, as maiores referências musicais na minha infância e juventude. Depois, chegaram os tropicalistas, Chico Buarque e tantos outros artistas que admiro até hoje.
Vez ou outra, acompanhava meu pai para ouvir, João Mello, Antônio Teles, as serestas do meu avô, José Domingues Fontes, e do General Graciliano, com os músicos João Argollo, meu professor de violão, Carnera, Carvalhal, João Rodrigues e, muitas vezes, Sílvio Caldas, que adorava cozinhar uma macarronada na casa da rua de Itabaiana com Senador Rolemberg, o “Castelinho” dos meus avós.
Em 1968, meu pai levou-me ao Charles Moritz para assistir as apresentações de um festival de música, onde alguns amigos dele e companheiros dos meus tios iriam concorrer. A minha lembrança afetiva desse momento só iria despertar anos depois, quando conheci, de perto, alguns desses artistas que, aos oito anos de idade, fizeram-me ficar quieto assistindo aquele espetáculo.
Compositores, cantores e músicos de uma geração de muito talento: Marcos Chulé; Zenóbio Alfano; Marcos Melo; Ezequiel Monteiro; maestro Eribaldo; Ariquitiba; Nino e seu Conjunto, que anos antes, com 12 anos, assinava seu nome artístico como Vilermando Orico, sendo o maior artista mirim da música sergipana; Tonho Baixinho; Alcides Melo; uma dupla que a sonoridade parecia familiar. A lembrança era da sonoridade dos discos que ganhei com a minha primeira vitrola. Um bom trabalho de harmonia nas vozes e dois violões bem executados. A dupla formada por Alberto Teixeira Nery e Valdefrê Fraga Resende, eram conhecidos como “Nery e Valdefrê”, lembrava Simon & Garfunkel. E ainda melhor, cantando em português
Avistava Valdefrê na casa do amigo Dentinho, pois sua irmã, Ilka era a namorada dele. E, logo depois, sua esposa. Ou quando ele jogava futebol de salão na Atlética ou no Continguiba. O cara era bom de bola como era de música. Nery só via nos shows.
Por intermédio de alguns amigos, soube que Nery tinha tocado em algumas bandas de baile e de rock. Mas, só vim reencontrá-lo no final dos anos 70, quando participei, juntamente com os amigos Alexi Pinheiro, Mingo Santana, Mary Barreto e Lula Ribeiro, da tentativa de formar a primeira cooperativa de música de Sergipe, a “Coopermúsica”. A ideia vinha dos nossos ídolos, Alcides Melo, Irmão e Tonho Baixinho, Cláudio Miguel, Ailton Cardoso e deles, Nery e Valdefrê.
A Coopermúsica durou pouco, mas aprendemos muito naquele momento. Tocamos juntos com eles, produzimos shows e eventos.
Éramos a turma dos “Novos”, rótulo que recebemos de Welington dos Santos, Irmão, ou seja, a força de trabalho da entidade. Estava eu ali, não mais na plateia, mas no palco e produção, a ouvir Nery e Valdefrê. Que boa lembrança, pois foram a sonoridade e harmonia de vozes que sempre acompanharam minha carreira musical.
Em 1981, montamos o nosso primeiro show profissional, Entre Amigos era uma turma boa. Cantávamos eu, Alexi Pinheiro, Emanuel Dantas e Dalila Aragão, com os músicos Maúricio Botto, piano; Jairo Bala, baixo; Marcos Passos, bateria; Paulo Bedeu, percussão; Cal Alencar, Flauta. Nos violões, eu e Emanuel. Ainda tivemos a participação de Joésia Ramos. A direção foi de Genival Nunes e a iluminação de Denys Leão.
Nos ensaios, sugeri que deveríamos convidar Valdefrê ou Nery para fazer a direção e arranjos vocais. Mas, Emanuel disse que tinha convidado o pessoal do grupo Órion, Joel e o Jairo, dois excelentes profissionais. Eles foram magníficos no trabalho.
Em 1982, montamos o segundo show do então grupo Entre Amigos, “Brasil Conversa de Fome”, uma leitura da realidade da época e, infelizmente, de hoje. Antecipei-me a todos e convidei Valdefrê para tocar com a gente, pois tinha ouvido falar que a dupla havia acabado. Valdefrê ainda fez alguns ensaios, mas não pôde participar do show, pois estava criando, junto com Cláudio Miguel, Antonio do Amaral e José Amaral, o Grupo Cataluzes.
Acompanhei a evolução do grupo e a carreira do excelente músico Valdefrê. O Cataluzes participou de festivais e gravou seu primeiro trabalho, Viagem Cigana, que o consagrou como um dos grupos mais importantes da música sergipana. O grupo ainda fez mais dois CD. O músico e compositor Valdefrê é um grande violonista, flautista, arranjador e tem como característica de suas canções a harmonia rica e elegante.
Os anos passaram-se e vez ou outra, recebia notícias de Nery. Formado em Administração, fez concurso para Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Casado, com três filhos, só tocava suas músicas no Centro Espírita que ele frequentava.
Em 1999, Nery reapareceu e gravou seu primeiro trabalho solo, que teve uma ligação profundo com as raízes Ciganas, “Na Ponta do Lápis” foi o título do CD.
“Nada que possa ter, nem onde possa estar, vai te fazer feliz, se não souber amar”. Assim Nery apresenou o seu “Na Ponta do Lápis”, com 13 faixas, tendo como destaque “Canto da Mata”; “Cheiro de Neném”, com a participação de Amorosa; “Por que você demora tanto?” música do Paulo Lobo, com participações do autor, Joésia Ramos, Chiko Queiroga, Antônio Rogério e Rubens Lisboa.
Nery relembrou sua parceria com Valdefrê, ao gravar “Como Antigamente”, de autoria de Valdefrê, canção que eu ouvi menino, com a dupla. Uma boa sensação e lembrança de qualidade da música de Sergipe. Além das canções que deu nome ao CD, a bela “Na Ponta do Lápis”: “Tudo que anda, anda e desanda, numa banda que desbanda na banda do lápis”.
O disco ainda contou com as participações de Alvino Argollo e de Matheus Batalha, filho de Nery. Esse disco foi o motivo da minha reaproximação com Nery. Dessa vez, definitiva, pois viramos grandes amigos, até a sua ida prematura para o astral.
Nery procurou-me para saber como poderia fazer a parte legal do CD, ISRC, liberação das canções que não eram dele, editoração, prensagem etc. Fiz o que pude e o que sabia para ajudá-lo. E ele lançou o CD no Teatro Atheneu.
O segundo CD de Nery foi gravado e lançado em 2001, com título “Meus Amores”. Desse tive o privilégio de participar intensivamente da produção ao lançamento.
O disco foi gravado no meu estúdio, Capitania do Som. Fiz a direção de estúdio e a mixagem juntamente com Valdo França, além de auxiliá-lo na produção do show de lançamento, numa convivência e aprendizado mútuo.
O CD teve 11 faixas, todas compostas por Nery, com destaque para “Meus Amores”, uma canção de acalanto, em homenagem a sua família, “… pois quando à tardinha Matheus, Laura e Larinha, num sorriso, transformam meu mundo e eu sei num segundo o que é amar”; “Doce Sonha”, uma bossa nova leve, com melodia e letra bem ao estilo Nery, “Doce sonhar como eu sonhei”. As músicas mais executadas nas rádios foram “Rock Blue”, com participação de Julinho Vasconcelos; “Cor do Sol”; Lelês Coco”; “Amor e paz”. Um disco histórico de um dos maiores ícones da música sergipana.
Nery, como todo cigano, era um homem desconfiado e muito tímido. Convivi alguns anos com ele, assinamos um trabalho juntos, o espetáculo de dança do portal Hanna Belly de Cecilia Cavalcante, bailarina que ele descobriu e que se tornou sua nora. Encontrava-me pelo menos três vezes por semana, quando conversávamos sobre música e sobre a vida. Bons amigos tornamo-nos. E na sua partida senti que um irmão estava nos deixando. Descobri logo que seu espírito continuaria a emanar luz e alegria.
"Sonhos de paz e amor só se farão sentir se abrir o coração e a dor deixar sair".
A música de Nery e seu jeito de cantar eram únicos. Sua espiritualidade era marcante e o seu coração gigante.
Eu só agradeço a Nery e a Valdefrê.
Coluna, blog